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Os dias não recomendam a escrita.
Apenas assinalo a data de hoje para depois voltar ao tema.
Recebi pelo correio, hoje, dia 19 de Junho, a Jornalismo & Jornalistas, nº 64 Jul/Set 2017.
Esta edição da revista do Clube dos Jornalistas é dedicada ao 4ª Congresso dos Jornalistas - que se realizou em Janeiro (e que depois teve de ser esticado para mais umas pinguinhas em Março).
Raquel Abecassis terá deixado o jornalismo para concorrer a uma junta de freguesia lisboeta nas listas do CDS-PP e de Assunção Cristas. Talvez seja melhor no exercício do cargo do que no exercício jornalístico.
Fez parte durante anos dos quadros da Rádio Renascença, um canal de referência noticiosa, onde chegou a directora-adjunta, e fez muitas vezes análise política nas televisões. Nos últimos tempos escreveu no digital da estação artigos contra a pós-verdade, embora nada a recomendasse para se insurgir contra as ideias falsas propaladas como verdadeiras.
A seguir às últimas legislativas, Raquel Abecassis insurgiu-se contra a Constituição que retardava a formação de Governo. A Lei Fundamental é um suspeito habitual, mas o prolongar do tempo para a entrada de um Governo em funções deveu-se mais à acção lenta e ressentida de Cavaco - em quem provavelmente Raquel Abecassis votou - do que ao que está escrito nos vários artigos do capítulo acerca da Formação e Responsabilidade do Governo.
Nada do que ali vem impede que um Governo entre em funções num prazo de duas semanas, no máximo de três, após as eleições. O Presidente da República tem de ouvir os partidos, o que pressupõe que estes falem primeiro entre eles, a remoer resultados, durante um par de dias após as eleições. Isso dá depois outro par de dias para o PR ouvir os partidos, outro tanto para para tomar uma decisão. E entretanto estamos no sábado seguinte. O PR nomeia, o Governo tem dez dias para apresentar o programa à Assembleia da República, o Parlamento três para o discutir. E o Governo entra em efectividade de funções. Está tudo escrito entre os artigos 187º e 192º da Constituição.
Mas Raquel Abecassis resolveu lançar-se à Constituição e opinar contra o que lá vem realmente escrito, sem que nas semanas seguintes isso a impedisse de criticar a chamada pós-verdade noticiosa - uma coisa que ela própria vinha ajudando a construir.
Olhe-se por onde se olhe nada recomendará muito Raquel Abecassis como jornalista e analista política.
Raquel Abecassis pode não ter lido a Constituição e pode ter falado de cor, o que revela uma prática jornalística medíocre.
Raquel Abecassis pode ter lido a Constituição e não ter percebido o que leu, o que também não lhe revela especiais dotes no exercício da profissão.
Raquel Abecassis pode ter lido a Constituição, ter percebido o que lá vem escrito e mesmo assim ter opinado como opinou. E isso arrasa quaisquer qualidades jornalísticas.
Olhando à volta, para a classe, acredito bastante que Raquel Abecassis caiu numa das duas primeiras possibilidades. A classe tem as qualidades, competências e capacidades de reflexão que tem. Chamam-se uns aos outros e reproduzem-se. E então nas chefias a mediocridade directamente proporcional aos egos é confrangedora. E isso reflecte-se dramaticamente na qualidade da informação produzida.
José Gomes Ferreira, que logo na escolha do nome profissional não evitou confundir-se com o poeta, continua por aí, director-adjunto da SIC, a querer confundir o que faz com jornalismo. Será entretenimento, será até opinião, mas sem o lado da análise jornalística, sem verdadeiro contraditório e sem pluralismo, mas jornalismo não é.
Esta semana, José Ferreira mais que do uma entrevista terá entrado num debate com o primeiro-ministro António Costa, "o António" como tratou o governante em plano de igualdade. Depois, após as críticas que choveram, que o pessoal tornou-se mais atento, veio escrever um lençol digital onde acusa os críticos e as redes sociais de pulsão censória.
José Ferreira é parte bem visível da má moeda jornalística, a moeda da lei de Grisham, que Cavaco celebrizou. A moeda má que afasta a boa. O jornalismo é infrequentável por causa dos Josés ferreiras - e de muitos outros com quem partilho carteira profissional, mas não espaço nas redacções - que a má moeda evacou-as de asseio jornalístico.
Ferreira até pode indignar-se como uma virgem ofendida com as críticas que lhe fazem. Mas se José Ferreira quiser mesmo falar de calar pontos de vista e de pulsões censórias talvez devesse olhar em redor, olhar para o jornalismo português e perguntar-se onde estarão e em que quantidade e em que cargos os que têm pontos de vista diferentes dos seus. O proveito lúbrico está mostruosamente longe de estar do lado dos que o criticam.
O tempo não abunda e a vontade de chover no molhado também não.
É um regresso talvez com duas notícias das notícias.
A morte de uma pessoa por atropelamento no contexto de um confronto entre adeptos de futebol junto ao estádio da Luz tem vários cúmplices morais.
Entre eles contam-se vários directores, editores, jornalistas e canais de televisão. Não só semeiam as tempestades como depois lucram com elas.
Cúmplices são também, pelo menos, um presidente de clube, alguns assessores de imprensa clubísticos e vários comentadores afectos a clubes de futebol.
Criério jornalístico é deixar cair rapidamente no esquecimento uma fuga de dez mil milhões de euros para offshores ocorrida durante anos e agarrar com unhas e dentes durante semanas e semanas o conteúdo de um SMS.
O título Quinta-feira e outros dias, livro de memórias de Cavaco Silva, parte de uma ideia interessante - é o dia que em Belém se reserva para as reuniões com o primeiro-ministro - mas acaba a meio caminho entre o de uma novela romântica e o de um livro de auto-ajuda. A capa lembra as estilizações modernas dos livros que em tempos pertenciam à colecção Sabrina.
Deve pressupor-se, pois, que os destinatários são os mesmos? Diria que não, mas depois há a pré-publicação da coisa no Expresso que não favorece esta expectativa. Falta sumo às revelações. O que o semanário destacou, a fazer fé nas televisões, foram as reuniões sonolentas de Cavaco primeiro-ministro com o Presidente da República Mário Soares; os atrasos sem aviso de Sócrates, em quem Cavaco não acreditava; a pontualidade de Passos Coelho, que aguardava calado as perguntas do inquilino de Belém.
Algum jornalismo há-de gostar disto a que chamam detalhes, pormenores que só por mero acaso definem um carácter. Mas se editores e jornalistas não encontraram no livro mais do que estes circunstancialismos sem concretização substancial, confirma-se pela enésima vez a espessura do autor. Ou então querem fazer suspense com o sumo.
O Governo Sombra começou na TSF e acabou a exibir-se na TVI24.
Agora é o Sem Moderação, do Canal Q, que ganha direito a ser ouvido na rádio.
Mais ou menos interessantes, independentemente das qualidades dos intervenientes, estes programas repetem-se em estereofonia, sem qualquer vontade de pluralismo de vozes.
Às direcções de programação e de informação nem ocorre manter o formato com outros tenores. Vão buscar os mesmos, a outros palcos, para que se possa ouvir os mesmos a dizer a mesma coisa. E alguns até se repetem em programas do género.
Os estágios curriculares dos cursos de jornalismo também servem as redacções.
Não se ensina nada, mas ao menos aprende-se a trabalhar à borla.
As universidades armadilharam o jornalismo com a parte não lectiva dos mestrados pós-Bolonha.
Depois de no primeiro ano se ter aulas ao estilo das licenciaturas, aquilo conclui-se no ano seguinte através da escrita e apresentação de uma dissertação, a chamada tese de mestrado; de um trabalho de projecto; ou de um estágio com relatório.
Está bom de ver que boa parte dos estudantes de ciências da comunicação, dos que pensam no jornalismo, preferem o estágio com relatório. Assim, tentam assentar praça numa redacção, lugar onde andam aos caídos e, pior, onde não aprendem absolutamente nada que faça sentido para lhes complementar a formação científica.
Em compensação, estão convencidos de que se podem fazer notar. De que têm ali uma oportunidade, dizem.
Só que nenhuma licenciatura de comunicação ganha absolutamente nada com os estágios curriculares. E um estágio profissionalizante, necessário para a obtenção da carteira profissional, é coisa absolutamente diferente,.
Um estágio curricular faz sentido em áreas disciplinares de forte componente experimental, onde os gestos façam a diferença, como nas medicinas. Onde a formação teórica necessite de se relacionar com uma prática e com um saber fazer que a universidade não pode dar. Não se pode fazer um diagnóstico sem estar com um doente real. É um campo do saber onde a prática simulada não substitui a prática real. Em Medicina não se consegue dar resposta aos pressupostos da profissão e aos conhecimentos obtidos com a formação superior se não se souber fazer determinados gestos ou cumprir determinados protocolos complexos. Nestes casos, a falha, o não juntar da compreensão teórica e da compreensão prática podem ter consequências letais.
Já o jornalismo é de uma simplicidade atroz. Precisa apenas de ver respondidas seis questões (O Quê? Quem? Quando? Onde? Como? e Porquê?) e seguir um código deontológico. Não é preciso um estágio para seguir estas práticas. Qualquer cidadão mediano consegue pegar num telefone, fazer essas perguntas a um interlocutor e transmitir as respostas. Muito menos faz sentido que uma Universidade reconheça valor científico a um estágio onde não se pode fazer mais do que responder às benditas seis questões.
Pode argumentar-se que há a rádio, que há a televisão, que há o digital. Que recorrem a outros meios. Mas é que nem aí se justifica um estágio curricular. Justifica-se, sim, um curso de formação. Mas mesmo sem aqueles meios o essencial do jornalismo continua a passar pela resposta às referidas perguntas e ao cumprimento de um código deontológico. E não pelo uso do equipamento.
As questões jornalísticas, aquelas a que interessa dar resposta num currículo científico de um curso superior de ciências da comunicação, não passam por filmar ou gravar com um smartphone ou por mexer num editor de imagem. Os meios mudam e os problemas da profissão continuam os mesmos. Posso não saber usar os meios, mas se perguntar o que tenho de perguntar, se seguir um código deontológico e se transmitir as respostas que obtive, então estou a fazer jornalismo. Em compensação, posso ser um mago da edição de vídeo ou de som, que se não fizer as referidas seis questões seis e atropelar o código deontológico não estou a fazer nada na profissão.
O essencial de um curso superior de jornalismo não passa pelo uso de equipamentos e ferramentas. A isso chama-se curso de formação profissional. Ou curso de actualização. Com as constantes mutações tecnológicas, um estudante que entre no primeiro ano a usar uma câmara de filmar, no final do quinto já terá mais umas dezenas à disposição. Mas isso é o que se passa com os jornalistas velhos e relhos: quando numa redacção de televisão se muda de editor de imagem, o que faz sentido é que toda a gente tenha um curso de formação para uso da nova ferramenta. O mesmo num jornal quando se muda de editor de texto. O jornalismo, aquilo que interessa avaliar, continuará sempre a passar pela obtenção das respostas às mesmas seis questões, cumprindo um código deontológico.
E todos esses meios, sabem?, até houve um tempo em que havia técnicos sem qualquer formação superior ou formação em jornalismo que os operava e manipulava. Pior, para fazer jornalismo, até houve um tempo (e não foi há tanto tempo como isso, que eu sou engenheiro) em que um curso de ciências da comunicação não era preciso para nada. E os resultados estavam longe de ser piores, mesmo que o restrito Clube dos Directores que Temos diga o contrário.
Os estágios curriculares no jornalismo não trazem qualquer mais-valia científica a uma formação superior ou ao conhecimento dos estudantes. Além de cientificamente facilitistas, os estágios curriculares são parte de uma corrente perversa e injustificada entre as redacções e a universidade. Os estágios curriculares no jornalismo permitem, aliás, à Universidade manter um ano curricular inteiro com quase ausência de custos humanos e financeiros: entrega-se o estudante a uma redacção onde, na melhor das hipóteses, terá acesso a uma doxa conformista, e reduz-se ao mínimo a interacção com um orientador académico. Uma ideia de formação que precisa de ser muito repensada e que obedece, no essencial, a medíocres critérios corporativos e exclusivistas.
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