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É impossível servir a democracia a partir de um lugar precário no jornalismo. Já aqui foi dito antes, e explicado, num dos muitos textos publicados nos Tempos Modernos desde 23 de Fevereiro de 2011.
Um estudo do ISCTE confirmou agora, como se fosse preciso, mas com dados empíricos, que a precariedade cala os jornalistas. E o Presidente da República disse-o também no IV Congresso dos Jornalistas.
O que um jornalista precário não diz é que Marcelo Rebelo de Sousa esteve uma década em campanha eleitoral em vários canais televisivos e que essa decisão de várias direcções informativas foi um continuado atentado ao pluralismo e ao direito à informação. Por muito diferente que intelectual e culturalmente Rebelo de Sousa seja de Berlusconi e de Trump (e é e também tem mostrado essa diferença no exercício do cargo) não é por isso que deixa de ter medrado e de se ter servido do mesmo dispositivo mediático-jornalístico do espectáculo. - o sabonete de que Emídio Rangel falava.
Um jornalista precário também não diz a David Dinis (sucessivamente jornalista de política, assessor de primeiro-ministro, editor de política em várias publicações e director de outras) que se quisesse regressar aos jornais teria de o fazer pela porta do Desporto ou da Cultura.
Um jornalista precário não diz a José Gomes Ferreira, director-adjunto num canal SIC, que talvez fosse melhor procurar um emprego na banca, em vez de conduzir programas de contraditório jornalístico praticamente nulo com centenas de convidados de sentido único.
Um jornalista precário não diz a João Vieira Pereira e Pedro Sousa Carvalho que foram promovidos apressadamente, e que as alegadas qualidades profisisonais e reflexões jornalísticas não justificam os lugares de direcção que têm sucessivamente ocupado.
Um jornalista precário não diz a José Manuel Fernandes o que pensa do modo como o antigo director do Público, agora ligado a uma publicação financiada por rapaziada que saiu do Compromisso Portugal, vincou narrativas como a das armas de destruição massiva no Iraque ou das escutas de Belém.
Um jornalista precário não diz a António Ribeiro Ferreira que não se chama jornalismo à mistura de opinião com noticioso factual que é aquilo que faz há anos nas inúmeras redacções por onde tem passado.
Um jornalista precário não diz o que pensa das qualidades do grosso dos jornalistas que, em círculo fechado, têm ocupado lugares de direcção nos jornais portugueses, sem que as publicações que dirigem passem a vender mais ou a ter a qualidade reconhecida pelos leitores. Uma lista por onde inevitavelmente passa gente como Paulo Ferreira, Raul Vaz, António Costa, Helena Garrido, José Rodrigues dos Santos, Ricardo Jorge Pinto.
O que um jornalista precário não faz é dizer às dezenas de colegas que nos seus escritos não vêem nada de mal em chamar geringonça ao Governo, que seria melhor reverem o código deontológico da profissão e regressar às aulinhas de Introdução à Capacidade de Reflexão e Leitura do Mundo I - lá onde se fala do que se deve fazer quanto à normalização do uso de expressões crismadas por uns partidos políticos para ofender e criticar os outros.
O que um jornalista precário não faz é escrever textos críticos da corporação e publicação que o acolhe sem acabar despedido ou demitido, com a alegação de que é pouco lido ou de que não há dinheiro para lhe pagar.
O que um jornalista precário não faz é pôr em causa critérios editoriais, temas e ângulo escolhidos, e mesmo processos de produção cheios de nós, saídos da cabeça de gente sem a mínima noção de investigação operacional ou de organização de linhas produtoras.
O que um jornalista precário não faz é dar notícia daquilo que os outros não perceberam que é notícia e fugir à repetição do que os outros já deram e disseram.
O que um jornalista precário não faz é rir-se na cara de quem lhe diz que um responsável editorial com passado saneador se demitiu por não querer despedir gente da redacção.
O que um jornalista precário não faz é manter o lugar e ainda assim continuar a servir a obrigação ética de criticar e modificar a profissão a partir do lugar interior que é a redacção.
Marcelo Rebelo de Sousa pode falar na necessidade de acabar com a precariedade. Tem razão. Outros podem (como também já fiz e defendo) convocar a necessidade de subvenções estatais para a imprensa. O futuro da imprensa, se quiser servir a democracia, passa por aí.
Mas o fim da precariedade tem de se fazer também indo chamar as muitas e muitas dezenas de profissionais que de modo mascarado, por outros motivos, foram sendo afastados da profissão e que por vontade sua não teriam ido embora. Profissionais que mesmo precários têm sido capazes de dizer tudo o que acima se elenca. E não se pode fechar no círculo exclusor dinamizado por muitos dos representantes da corporação.
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