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Construção
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado
Chico Buarque, 1971
Este domingo aproveita-se a oportunidade da atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan para sete postados dedicar a sete músicos cuja obra literária atinge igual cume: José Afonso, Chico Buarque, Georges Brassens, Jacques Brell, Leo Ferré, Leonard Cohen e o Nobel deste ano.
Agora que deram o Nobel da Literatura a um cantor, será que lhes ocorre dar o Camões a Chico Buarque?
Em 1969, a ditadura brasileira entrara definitivamente nos seus anos de chumbo. Por esses dias, os militares davam uso cada vez mais largo ao pau-de-arara. Na clandestinidade, Carlos Marighela publicava o Manual do Guerrilheiro Urbano, pouco antes de cair assassinado às mãos dos gorilas do DOPS. Julinho da Adelaide – alter-ego de Chico Buarque – preferia “chama[r] o ladrão” a confiar nos policiais, num dos refrões com que fintava a censura.
Em Salvador, a Polícia Federal não sabia o que fazer com Caetano Veloso nem com Gilberto Gil, após uma primeira detenção por subversão. A pedido do coronel Luís Artur, as autoridades acabaram por deixar os dois cantores dar um espectáculo para financiar a partida para o exílio inglês.
O concerto fez-se a 20 de Julho desse ano, no Castro Alves, o recém-inaugurado teatro baiano, no mesmo dia em que Neil Armstrong pisava a Lua. Gravado em péssimas condições técnicas registou Alegria, Alegria, hino do movimento Tropicalista; e a histórica primeira audição pública de Aquele, Abraço – um samba dedicado a Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso. O show repetiu-se no dia seguinte e o resultado pode ouvir-se no som precário de Barra 69.
Alegria, Alegria – paródia e homenagem pop à MPB – segue de perto A Banda, provavelmente o maior sucesso popular de Chico Buarque. Os primeiros versos dos dois temas podem aliás cantar-se sobre qualquer uma das duas músicas e reflectem o mesmo estado de espírito: Se a moça de Chico, “Estava à toa na vida”, já o herói de Caetano, “Caminhava contra o vento/Sem lenço nem documento.”
Reforçando o lado eléctrico, Caetano tocava habitualmente a marcha carnavalesca acompanhado pelos Beat Boys – banda rock argentina que substituiu o desejado CR7, septeto ié-ié e formação típica da Jovem Guarda capitaneada pelo rei Roberto Carlos. E pela primeira vez numa letra brasileira falava-se em Coca-Cola. Convergência com os irmãos Campos, Oiticica, Pignatari, Glauber Rocha, a poesia Concreta e o Cinema Novo.
O concerto termina emotivo, impossível ignorar o contexto, com Aquele, Abraço – terna e irónica despedida de Gil ao Brasil. O rancor pelo exílio forçado não vence a beleza de um “Rio de Janeiro [que] continua lindo” nem a emoção e a mágoa por ter de abandonar “todo o povo brasileiro”. Uma canção de perdão e “aquele abraço para quem fica".
No aniversário de Chico Buarque.
As lista são sempre pessoais. Dos Dez Melhores... , dos Dez Piores... , das Dez Mais Bonitas... , dos Dez Mais Cobiçados... , etc..
Dirão mais sobre quem as elabora que sobre a qualidade concreta do que propõem.
Agora que entregaram o Camões ao enviado de Dalton Trevisan, no Brasil a lista dos candidatos mais imediatos tem pelo menos dois nomes. Um é óbvio, o dramaturgo Ariano Suassuna, autor do picaresco O Auto da Compadecida. O outro também é óbvio. Chama-se Chico Buarque, estudou arquitectura e escreveu poemas com o rigor de uma Construção.
(Foto: blogue do movimento Direito Para Quem?)
A RTP-Memória exibiu, já esta madrugada, um Falatório de 1997, programa emitido originalmente em directo, onde Clara Ferreira Alves entrevistava/conversava com José Saramago, Sebastião Salgado e Chico Buarque, a propósito de Terra, trabalho conjunto sobre o Movimento dos Sem Terra na sequência da chacina do Eldorado dos Carajás. Tão serviço público na altura como o é agora.
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