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Há pouco tempo, o canto da varanda, um bloco maciço de cimento e ladrilhos, com perto de um quilo, caiu da altura de um quarto andar, sem que se tivesse dado pela fractura iminente.
Era fim-de-semana e iniciou-se a ronda das capelinhas, quem interditaria a vertical do prédio de maneira a impedir acidentes com as pessoas e as viaturas que habitualmente estacionam no passeio debaixo das varandas.
Passou-se pela PSP e pelos bombeiros e acabou-se a falar a um domingo com o responsável da protecção civil do concelho.
Explicou-se ao simpático senhor que almoçava com a família que podia ser domingo, mas convinha fazer qualquer coisa no imediato, pois ele adiava para o dia seguinte.
Entre ele vir colocar obstáculos à circulação no passeio - que impedissem estacionamentos e a passagem de pessoas - e iniciar uma obra poderia voltar a cair qualquer coisa e morrer alguém.
Apesar da primeira resistência, não foi difícil convencê-lo a vir. Mas depois não contactou ninguém para perceber melhor a situação. E fez asneira. Ao chegar, instalou os obstáculos e foi-se embora. Ficaram sob a varanda errada.
Os donos da varanda lá corrigiram a situação, arrastaram os pinos e as faixas delimitadoras para debaixo da varanda certa. Não contavam era com os vizinhos. Ao longo dos dias seguintes, até se iniciar a obra imediatamente pedida, os obstáculos foram sendo retirados, mudados de sítio, reajustados na posição. Havia quem estacionasse ali, as pessoas continuavam a passar por lá.
Havia sempre alguém que mexia nas balizas e as mudava de sítio como se não estivessem ali para minimizar o risco potencialmente fatal da queda vertical de calhamaços de cimento e ladrilhos. Não lhes ocorria que aquele estendal tinha uma qualquer justificação, nem mesmo tendo pespegada a identificação da protecção civil concelhia. Pensavam lá que pudessem estar a matar alguém.
É tarefa impossível a de parar num qualquer programa de antena aberta ou numa entrevista da Margarida Rebelo Pinto sem se ficar com a nítida impressão de que o país se encontra repletinho de Camonistas. Embora numa outra vida até tenha havido um primeiro-ministro que lhes confundiu o número de cantos - ele gosta de apregoar que é mais números - Os Lusíadas recuperados pela opinião pública são um bom termómetro do Estado da Arte da conversa de café, também apelidada de cultura taxista ou sabedoria popular.
Com o conceito de "Velho do Restelo", muitas vezes pluralizado, atirado para os debates sobre bola radio e teledifundidos, fica reservada a "Inveja", palavra terminal do épico de Camões, para quem quer opinar sobre temas de política, cultura ou de televisão. Que é, dizem os pós e preopinantes, o grande mal nacional; que por isso é que não vamos a lado nenhum; que não passamos da cepa torta ou que, por sua causa, nunca mais entramos no pelotão da frente dos países civilizados.
Permitam-me discordar. Maior mal nacional é a falta de sentido cívico da esmagadora maioria dos portugueses. Uma gente que só se queixa quando lhe dói a pele para logo se esquecer do que dizia quando vê doer a do vizinho. Uma gente que prefere ver destruídos os direitos conquistados pelos funcionários públicos a lutar por iguais condições.
Toda esta conversa para me queixar do cavernícola que com a rua toda para estacionar em segunda fila preferiu fazê-lo em frente a um raro lugar vago, enquanto tratava de ir almoçar. Com o mesmo à vontade com que no restaurante fará sala após a refeição, enquanto se adensa o número dos que aguardam vez por uma mesa. Com a mesma displicência com que nos centros comerciais parará a viatura nos lugares marcados com cadeiras de rodas.
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