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Já se contou aí para baixo como, há uma dezena de anos, a minha interpretação do artigo 187º da Constituição foi desqualificada por um ex-editor de política de um grande diário nacional. Já se contou também como, em 2015, num canal televisivo, tantos jornalistas de política descobriram o artigo que tornava possível um partido com menos votos que outro formar Governo. Esses mesmos que não tinham lido a Constituição espantavam-se com o que só tinham visto em Borgen, uma série acerca da política dinamarquesa. E esses mesmos continuam a fazer jornalismo, com toda a presciência que a ignorância e o preconceito lhes garantem.
Dá-se de barato que, há pouco mais de um ano, o grosso dos jornalistas que fazem política não tivesse percebido o que se estava a passar. Não valem mesmo grande coisa enquanto colectivo pomposo, inculto e influente. Mas esta semana, confirmou-se que no PSD se continua também sem perceber o que lhes aconteceu por conta do referido artigo.
No recente debate parlamentar acerca da descida da TSU, vários parlamentares laranjas, entre eles o presidente do partido, voltaram a vincar a ilegitimidade do PS para governar. Zangaram-se, disseram que a maioria não consegue fazer aprovar as suas próprias medidas e fazê-las cumprir. E, hoje, Aguiar Branco, voltou ao mesmo numa entrevista ao Diário de Notícias: Que
"sem maioria parlamentar, Governo não tem legitimidade para governar."
Sim, claro, apetece dizer ao deputado e ex-ministro de um governo, o segundo e último de Passos Coelho, que caiu ao fim de pouco mais de um par de semanas na sequência da rejeição do programa pela maioria dos partidos de esquerda na Assembleia da República.
O Governo sem legitimidade de que falaram Passos Coelho e Aguiar Branco sempre tem acrescentado meses ao tempo que a PàF conseguiu para o seu segundo Governo. Mas no PSD continua-se a assobiar e a fazer de conta. António Costa pode bem a atitude. Quando os cubes perdem tempo com erros de arbitragem e com injustiças, outros entretêm-se a jogar.
Catita ver Raquel Abecassis perorar acerca da pós-verdade, palavra do ano para o dicionário Oxford.
A jornalista da Rádio Renascença, no auge da dúvida que assolou Cavaco Silva quanto a pedir a António Costa que tentasse formar Governo, escreveu doutoral que em Portugal a Constituição fazia com que se levasse muito tempo a formar Governo. Bastava conhecer o articulado da Lei Fundamental para perceber que não era dessa banda que vinha o empatar da nomeação.
Pós-verdade é a ideia falsa assumida como verdadeira apenas por se adequar às nossas convicções. Alguma diferença entre uma pós-verdade e o que a jornalista disse acerca da Constituição e o tempo de formação do Governo?
Os jornais acabaram há muito com o pluralismo e com a variedade de vozes. Uma parte muito significativa – ou pelo menos a parte mais audível – dos meus camaradas jornalistas de política e de economia no activo pouco se distingue de correntes transmissoras de uma ideia única.
O grosso do comentário que fazem é de uma pobreza confrangedora, repetido uns dos outros, alicerçado em lugares comuns, em preconceitos e em agendas com que convivem acriticamente. O único que vi a prever o Governo que hoje temos foi, aliás, despedido pouco depois - o que deve querer dizer qualquer coisa.
Quanto aos directores são quase sempre os mesmos, em quase todos os lugares. Há mais de dez anos, um grupo quase fechado a dançar entre as mesmas cadeiras. E, apesar de focos de qualidade aqui e além, o geral do produto jornalístico é abaixo de cão. E as vendas também não são famosas. Com os que estão, meço as palavras, não se cumpre (nem cumprirá) a obrigação constitucional de informar.
A Espanha anda desde 20 de Dezembro para formar Governo.
Para permitir por cá a nomeação mais céleres dos executivos, uma veterana do jornalismo político português insinuava, em Novembro, uma revisão de prazos constitucionais.
Como se os emperramentos propositados de Cavaco tivessem origem no texto da Constituição. Lendo-a apenas vê-se como a rapidez de nomeação nada tem a ver com a Lei Fundamental. E, em contraponto, como são frágeis as bases em que assentam tantas opiniões do jornalismo político.
É apenas conversa velhinha e ideológica de jornalistas e comentadores políticos, uma gente que se especializou na política nacional sem ter lido a Constituição e sem perceber das coisas da política muito mais que as pequenas intrigas, tricas e jogos.
Podia vir desta ignorância essencial a ideia de ensinar a Constituição na escola, uma lembrança que faz convergirem um bom amigo meu e o Presidente da República.
O flagelar do que é português tem séculos. Desde que me lembro, não páram as críticas ao tempo que em Portugal se demora a formar Governo. Só que até temos na Constituição um bom motor de rapidez de nomeação de governos.
Os prazos fixados são expeditos, haja quem ache dever acelerar. Como acham tantos jornalistas e comentadores - os mesmos que depois avançam modelos estrangeiros. Com desconhecimento do que afirmam (o mesmo desconhecimento que da constituição teria a veterana jornalista política). E com o azar que se vê no comparar com exemplos recentes.
A Espanha anda desde 20 de Dezembro para formar Governo. Ainda se pode dizer ser problema ibérico, dos povos do sul. Mas com a eficaz Alemanha andou-se ao mesmo.
Afirmações destas, sobre a Constituição e escritas por uma jornalista de currículo invejável e com muitos anos de jornalismo político em cada perna, ganham em ser lidas com isto.
Raquel Abecassis trabalha na Rádio Renascença, emissora onde, sem ironia alguma, se faz jornalismo de referência.
Acresce que Raquel Abecassis tem demasiados anos de jornalismo para se aceitar que responsabilize o articulado da Constituição por ainda não haver um Governo a funcionar em plenitude de funções:
Ora, era interessante saber o que leva a experiente jornalista da área política a fazer uma afirmação destas. Salvo melhor opinião, não dou com outros articulados, nada nesta alegada demora para constituir Governo pode ser assacado à Lei Fundamental.
O que a Constituição prescreve é que
Artigo 187º. (Formação)
Ou seja, para nomear quem forme Governo, o PR tem de ouvir os partidos, coisa que Cavaco, cavalgando proximamente a inconstitucionalidade, começou por não fazer. De seguida, nomeia-o. Nada está especificado quanto a tempos, mas convém que haja consciência daquilo que cada situação exige. O que decorre apenas do bom-senso do Presidente da República e não do articulado da Constituição. Com o Governo nomeado, passa-se, de seguida, para a entrada em funções do Executivo.
Artigo 186º (início e cessação de funções)
Após a tomada de posse, o Governo tem um prazo curto, de dez dias, para apresentar o programa.
Artigo 192º (Apreciação do programa do Governo)
Ou seja, no texto da Lei Fundamental, há um prazo de dez dias para apresentar programa, o resto é deixado ao cuidado dos agentes políticos a sua agilização.
Infelizmente, passando asinha, asinha pelas responsabilidades de Cavaco, principal causa motora da formação do Governo, e principal retardador do processo, Raquel Abecassis nem sequer resiste à habitual ladainha decadentista sobre Lá fora é que é bom e lá é que se faz tudo bem. Até fala de outros países - não diz quais, mas não deve ser a Alemanha - onde tudo teria corrido em grande velocidade. À falta de consistência das análises, ainda se junta a convicção obstinada sobre negativas excepcionalidades nacionais que, depois, vai a ver-se, e, como no caso alemão, nem sequer perdem com esta comparação.
Há muito tempo, não tarda dez anos, lá na revista, discuti com o meu editor o teor do artigo 187º da Constituição. Garanti-lhe que nada obrigava o Presidente da República a indicar para formar Governo o partido mais votado. O Chefe de Estado apenas era obrigado ouvir os partidos com representação parlamentar e, com base nos resultados eleitorais, nomear o primeiro-ministro.
Com o habitual ruído desvalorizador, a chefia em causa não se deixou convencer. E, no entanto, fora editor de política, primeiro, e numa espécie de espaço de debate, depois, servira até como espécie de mestre-de-cerimónias de dois que viriam ser primeiros-ministros.
Há semanas, no âmbito de uma formação, para aí no dia 12 ou 13 de Outubro, já António Costa negociava à esquerda, cruzei-me com um quadro televisivo que explicava como os jornalistas de política deitavam mão a Borgen, a série sobre os bastidores da política dinamarquesa. Usavam o programa para explicar como o segundo partido mais votado em legislativas podia tornar-se Governo, após reunir um apoio parlamentar maioritário. Disse-lhe que um dos problemas dos jornalistas políticos portugueses era verem demasiada televisão em vez de lerem a Constituição.
Só não tinha imaginado a obrigação constitucional de ouvir os partidos antes de dizer ao presidente do seu que fosse formar Governo.
* Título do Jornal de Notícias
(Fonte: economico.sapo.pt)
Como bem se sabe, é de direita todo aquele que diz já não existirem diferenças entre esquerda e direita.
Questionado no Público sobre o repensar das funções constituicionais do Estado, Ferro Rodrigues, chefe da bancada parlamentar socialista, responde que
Ao exprimir o desejo de que o estabelecimento das funções estatais continuem a dividir esquerda e direita, manifesta dúvidas subliminares quanto à firmeza de convicções ideológicas do PS, partido de que foi secretário-geral e que apenas umas perguntas antes dizia ser o partido mais à esquerda do espectro partidário português.
Ferro, o PS e o país ganhariam mais em resolver as contradições dos seus, do que em acenar fantasmas antigos e procurar perigos e contradições na restante esquerda como faz na mesma entrevista. A agenda da década, apresentada há dias por António Costa, mostra que os socialistas pouco aprenderam com a crise, sobre as suas causas e o seu papel nela. A situação portuguesa concreta resulta de acções e decisões postas em prática pelos que estiveram presentes no Governo. Nunca da ausência de outros, independentemente da leitura de responsabilidade por essas não presenças que o chefe da bancada rosa possa fazer.
E é pena que não resolvam as contradições. João Galamba, Pedro Nuno Santos e Pedro Adão e Silva, que pertenceu ao secretariado de Ferro Rodrigues, têm escrito coisas acertadas e inteligentes (aqui, aqui, aqui, ou aqui, por exemplo). Não se vê é como poderão pô-las em andamento com os caminhos traçados pela direcção que apoiam e ainda agora elegeram.
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