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Publico, com ajustes, meia dúzia de parágrafos, de um trabalho académico meu já com dois anos (e que até pode ser lido tendo presente a figura de Donald Trump). Num esforço com outro propósito e extensão dois assuntos ganham em ser equacionados em conjunto:
«(1) o espírito e atitudes dos júris de alguns modernos concursos televisivos, de que Ídolos é modelo exemplar; e (2) as praxes estudantis. O primeiro caso, vincado pelo modo como os jurados tratam os concorrentes, veicula para os espectadores, e de modo espectacularmente agressivo e exuberante, uma alegada ideia de exigência, ética e entrega profissionais que valeria a pena estudar em termos de percepção, recepção, aceitação, recriação e reprodução no âmbito das relações hierárquicas e laborais, sociais e até de género. Quanto ao segundo desses temas, a praxe estudantil, mais do que fenómeno a pedir caracterização do ponto de vista sócio-económico ou do carácter iniciático interessa por se constituir enquanto dispositivo de violência e poder político, que constrói a sua legitimidade fáctica dentro do espaço escolar simultaneamente aberto e concentracionário e em articulação com outros agentes da corporação escolar e da Cidade.
Convém não perder de vista como as instituições de ensino têm os seus espaços de confinamento físicos próprios, as suas regras e normas específicas e até mesmo regimes disciplinares internos. Mas ao contrário de uma loja, fábrica ou banco, e por mais sólida que seja a cultura empresarial de cada uma delas, a Universidade tem outros horizontes. As instituições escolares funcionam, por exemplo, dentro de limites onde a ordem policial civil continua a não poder entrar sem autorização das autoridades corporativas investidas, um privilégio periódica e cronologicamente adquirido e perdido.
Há a escola e há o mundo do trabalho. Do mesmo modo que, para pegar em exemplos foucauldianos, existe a prisão e o mundo lá fora; ou o hospital e a realidade dos que são (ou estão ainda) saudáveis. Que existe esse degrau entre a escola e o mundo, esse contemptus mundi, o desprezo do mundo, de que se falava nos mosteiros da Idade Média, é provado não só pelas dificuldades de acesso dos policiais, mas também pelos recorrentes convites a que Universidade e Trabalho se aproximem.
Este processo tem algo de equalizador e assenta num discurso político que, nos últimos anos, tem tentado desentranhar o espírito de corpo de várias instituições estatais ou na sua órbita pública, mas que em última instância não deixa de constituir também um assalto à fortaleza. Ao permitir ou ao criar condições para que o exterior, a Sociedade Civil, penetre na corporação desordenam-na nos seus pressupostos intrínsecos e estabilizados, mas também lhe fragilizam a capacidade de intervir política e autonomamente na sua condição estadual. Este processo pode ser observado em dois andamentos. Nos últimos anos desapareceram da Universidade portuguesa os órgãos de gestão com presença paritária de docentes e estudantes – como foram os senados, assembleias de representantes, conselhos directivos e pedagógicos, depois do 25 de Abril – e criaram-se conselhos gerais já entrados pela Sociedade Civil e por personalidades que muitas vezes às universidades dizem nada.
Fora das funções de soberania, e talvez por isso situados num espectro menos visível enquanto engrenagem do aparelho estatal, a Universidade é também um foco de poder com procedimentos a que o Estado dá cobertura mesmo quando os não institui burocraticamente. Seguindo Foucault, o Estado surge mais como um de entre muitos efeitos possíveis da concertação de micropoderes e terá resultado no essencial de mudanças nas formas de governo que se engrenaram e acamaram num sentido e não noutro. Assim, em última instância, uma descentralização desta microfísica de poderes – como a que se opera dentro da universidade e é reproduzida nas estratégias discursivas dos mais variados agentes que assim tecem uma matriz nominalista, como lembra Jorge Ramos do Ó – pode bem concretizar-se noutros resultados que não a forma Estado.
Mas talvez este exercício seja mais do âmbito da chamada Ciência Política, um saber zandinguizante, de prospecção e acção, mais do que de conhecimento científico analítico-sintético; ou de uma concepção historiográfica ultrapassada – a que vê a História como mestra da vida e capaz de antecipar os futuros.»
Ferreira Fernandes in E se Donald Trump me obriga a pagar o que aprendi com ele?
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