Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
É fácil transformar uma notícia em opinião. Veja-se o lead de peça apresentada ontem na SIC.
"Depois das consequências para a economia dos longos períodos de greve em 2012, as atenções voltam-se de novo para a zona portuária. O sindicato dos estivadores denuncia..."
No primeiro período apresenta-se o que se considera "O Facto": Greve longa teve consequências na economia. Não há fonte para a questão do impacto económico. É puro senso-comum apresentado como axioma. Tal como é factual e absoluto o ter também resultado da greve.
Logo a seguir, diz-se que o "sindicato dos estivadores denuncia..." Aqui já se admite um ponto de vista, que mais à frente será contraditado, como mandam as regras, pelo ponto de vista dos seus empregadores. O que ocorre nos portos é atribuído. Já não é senso-comum. Há uns que dizem umas coisas, outros que dizem outra. O que sucede nos portos, é um puro caso de luta de interesses e direitos. Um combate de relativos.
O que é dado em termos absolutos, factuais, exactos é a ideia de que a greve, feita pelos estivadores, tem impacto na economia. Claro que terá, mas o efeito desse impacto é tão construído como os pontos de vista de estivadores e empregadores. Mas o jornalista dá-o como adquirido, como legítimo. Não o dá como tendo origem num gabinete de assessores ministeriais com interesse em denegrir a imagem dos estivadores em greve. É o jornalismo a tomar partido em vez de informar.
Quando se fala cada vez mais da necessidade de crescimento económico, uma greve com impacto na economia afasta a compreensão dos espectadores mais dispostos a culpar os rotos pela sua miséria. E são tantos.
O que não falta por aí são peças com a conclusão pronto-a-vestir logo à cabeça, notícias prontas a disparar sobre os grevistas, opinião com gato escondido. Eu fiz engenharia. Não estudei os sentidos que encerram as frases, a insustentável leveza de um testemunho, de um ponto de vista. Não me ensinaram os abismos onde caem os factos em estado puro. Mas a maior parte dos jornalistas fez ciências da comunicação, cursos onde se estudam estas coisas. É impossível não saberem o que estão a fazer.
No Governo Sombra, da TSF, João Miguel Tavares eriça-se pois, segundo afirma, para se ser estivador tem de haver aprovação prévia do trabalhador pelos sindicatos da classe. Um escândalo que a contratação esteja na mão dos sindicatos.
O problema é que Tavares é jornalista. E no jornalismo, efectivamente, só entra quem os patrões querem. Ou bem que direcções e chefias os deixam publicar nos seus órgãos de comunicação, ou o pedido da carteira profissional fica impossibilitado.
E o que não falta na classe é gente saneada e impedida de publicar apenas por ser desagradável aos que se esqueceram de noticiar que vinha aí a crise.
(Foto:http://ancienthistory.about.com)
Paula Castanho tem tempo suficiente de jornalista para saber as implicações do uso dos artigos definidos na construção de uma frase rigorosa e objectiva.
Ao acompanhar em São Bento os protestos contra o Orçamento de Estado 2013 diz em determinada altura que "agora" ouvem-se aplausos. No entanto confessa-se incapaz de perceber os motivos para estes. A jornalista afirma não ter ouvido declarações novas: apenas as habituais frases contra "os" deputados. O que poderia com legitimidade e rigor afirmar seria, quando muito, "apenas as habituais frases contra deputados", sem o artigo "os" que transforma alguns deputados em todos os deputados. A percepção é feita no domínio do quase subliminar. O que ainda torna as coisas mais graves.
Ora, se estiveram atentos ao dia político, os jornalistas têm obrigação de saber que a manifestação era contra o Orçamento de Estado. E logo contra os partidos que o aprovaram. Leia-se, PSD e CDS-PP com a excepção do deputado madeirense Rui Barreto.
Em nome da simplificação do discurso, ou da simplicidade de análise, não vale misturar todos os deputados no mesmo magote. Bernardino Soares e António Flipe do PCP foram alguns dos que os directos televisivos apanharam junto aos manifestantes. Estariam lá outros, de outros partidos. Não parece que tenham sido importunados. E se a saída de deputados em viaturas complica a identificação do parlamentar e leva ao apupo preventivo, não será por isso que os manifestantes de ontem não sabem distinguir o seu trigo do seu joio. A manifestação contra o orçamento de Estado para 2013 não foi nem contra a CDU, nem contra o BE e, no caso específico e concreto, nem dirigida ao PS, que ontem pode ter feito um certo corte com o passado mais recente.
O artigo definido usado por Paula Castanho é populista e demagógico. Aquilo que comunica, aquilo que põe em comum - de acordo com o étimo latino - não é objectivo, não é rigoroso, não é verdadeiro. Contribui para a estupidificação do discurso. Para a ideia de que eles, os políticos, são todos iguais. Mas não foi isso que aquela gente que esteve ontem em frente à Assembleia da República disse. Os manifestantes têm os seus alvos muito bem definidos. Dos estivadores, ao Movimento Sem Emprego, à CGTP, aos outros que lá estiveram. Passar o contrário nos canais televisivos cria nos espectadores que não estão no local uma realidade alternativa. A ilusão de que não há alternativas.
Já tive esta discussão com um ex-editor meu. A do uso dos artigos definidos. Recusava o meu ponto de vista. Cinco anos de estudos em Ciências da Comunicação, quase vinte anos de jornalismo, por acaso com os primeiros passos em redacção dados no mesmo sítio que a jornalista da SIC, e ninguém lhe ensinou os poderes performativos da semântica. Uma coisa que nem os antigos sumérios, há mais de quatro mil anos, ignoravam.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.