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Entrevistados pelo canal Q, dois jornalistas, desses mais divertidos, contam histórias sem sequer darem conta de que estão a confessar atropelos deontológicos.
Num caso, confessa-se o interesse de um patrocinador na cobertura de um evento desportivo-radical por determinado jornalista.
No outro caso, confessam-se responsabilidades de uma redacção na exibição ao estilo apanhados da entrevista de uma mulher - com evidentes défices culturais - que nunca foi para o ar.
Os dias não recomendam a escrita.
Apenas assinalo a data de hoje para depois voltar ao tema.
Recebi pelo correio, hoje, dia 19 de Junho, a Jornalismo & Jornalistas, nº 64 Jul/Set 2017.
Esta edição da revista do Clube dos Jornalistas é dedicada ao 4ª Congresso dos Jornalistas - que se realizou em Janeiro (e que depois teve de ser esticado para mais umas pinguinhas em Março).
As universidades armadilharam o jornalismo com a parte não lectiva dos mestrados pós-Bolonha.
Depois de no primeiro ano se ter aulas ao estilo das licenciaturas, aquilo conclui-se no ano seguinte através da escrita e apresentação de uma dissertação, a chamada tese de mestrado; de um trabalho de projecto; ou de um estágio com relatório.
Está bom de ver que boa parte dos estudantes de ciências da comunicação, dos que pensam no jornalismo, preferem o estágio com relatório. Assim, tentam assentar praça numa redacção, lugar onde andam aos caídos e, pior, onde não aprendem absolutamente nada que faça sentido para lhes complementar a formação científica.
Em compensação, estão convencidos de que se podem fazer notar. De que têm ali uma oportunidade, dizem.
Só que nenhuma licenciatura de comunicação ganha absolutamente nada com os estágios curriculares. E um estágio profissionalizante, necessário para a obtenção da carteira profissional, é coisa absolutamente diferente,.
Um estágio curricular faz sentido em áreas disciplinares de forte componente experimental, onde os gestos façam a diferença, como nas medicinas. Onde a formação teórica necessite de se relacionar com uma prática e com um saber fazer que a universidade não pode dar. Não se pode fazer um diagnóstico sem estar com um doente real. É um campo do saber onde a prática simulada não substitui a prática real. Em Medicina não se consegue dar resposta aos pressupostos da profissão e aos conhecimentos obtidos com a formação superior se não se souber fazer determinados gestos ou cumprir determinados protocolos complexos. Nestes casos, a falha, o não juntar da compreensão teórica e da compreensão prática podem ter consequências letais.
Já o jornalismo é de uma simplicidade atroz. Precisa apenas de ver respondidas seis questões (O Quê? Quem? Quando? Onde? Como? e Porquê?) e seguir um código deontológico. Não é preciso um estágio para seguir estas práticas. Qualquer cidadão mediano consegue pegar num telefone, fazer essas perguntas a um interlocutor e transmitir as respostas. Muito menos faz sentido que uma Universidade reconheça valor científico a um estágio onde não se pode fazer mais do que responder às benditas seis questões.
Pode argumentar-se que há a rádio, que há a televisão, que há o digital. Que recorrem a outros meios. Mas é que nem aí se justifica um estágio curricular. Justifica-se, sim, um curso de formação. Mas mesmo sem aqueles meios o essencial do jornalismo continua a passar pela resposta às referidas perguntas e ao cumprimento de um código deontológico. E não pelo uso do equipamento.
As questões jornalísticas, aquelas a que interessa dar resposta num currículo científico de um curso superior de ciências da comunicação, não passam por filmar ou gravar com um smartphone ou por mexer num editor de imagem. Os meios mudam e os problemas da profissão continuam os mesmos. Posso não saber usar os meios, mas se perguntar o que tenho de perguntar, se seguir um código deontológico e se transmitir as respostas que obtive, então estou a fazer jornalismo. Em compensação, posso ser um mago da edição de vídeo ou de som, que se não fizer as referidas seis questões seis e atropelar o código deontológico não estou a fazer nada na profissão.
O essencial de um curso superior de jornalismo não passa pelo uso de equipamentos e ferramentas. A isso chama-se curso de formação profissional. Ou curso de actualização. Com as constantes mutações tecnológicas, um estudante que entre no primeiro ano a usar uma câmara de filmar, no final do quinto já terá mais umas dezenas à disposição. Mas isso é o que se passa com os jornalistas velhos e relhos: quando numa redacção de televisão se muda de editor de imagem, o que faz sentido é que toda a gente tenha um curso de formação para uso da nova ferramenta. O mesmo num jornal quando se muda de editor de texto. O jornalismo, aquilo que interessa avaliar, continuará sempre a passar pela obtenção das respostas às mesmas seis questões, cumprindo um código deontológico.
E todos esses meios, sabem?, até houve um tempo em que havia técnicos sem qualquer formação superior ou formação em jornalismo que os operava e manipulava. Pior, para fazer jornalismo, até houve um tempo (e não foi há tanto tempo como isso, que eu sou engenheiro) em que um curso de ciências da comunicação não era preciso para nada. E os resultados estavam longe de ser piores, mesmo que o restrito Clube dos Directores que Temos diga o contrário.
Os estágios curriculares no jornalismo não trazem qualquer mais-valia científica a uma formação superior ou ao conhecimento dos estudantes. Além de cientificamente facilitistas, os estágios curriculares são parte de uma corrente perversa e injustificada entre as redacções e a universidade. Os estágios curriculares no jornalismo permitem, aliás, à Universidade manter um ano curricular inteiro com quase ausência de custos humanos e financeiros: entrega-se o estudante a uma redacção onde, na melhor das hipóteses, terá acesso a uma doxa conformista, e reduz-se ao mínimo a interacção com um orientador académico. Uma ideia de formação que precisa de ser muito repensada e que obedece, no essencial, a medíocres critérios corporativos e exclusivistas.
Houve um dia em que percebeu que aquilo que, em vários, se acreditava ser do domínio da simulação, era, afinal, muito mais, do da dissimulação.
Mais do que não ter algo que se fazia de conta que se tinha, fazia-se de conta que se não tinha algo que se tinha.
Daí em diante tudo se tornou extraordinariamente transparente. E de impossível convívio ético.
É um exemplo possível, mas, entre os civis, as opiniões acerca do IV Congresso dos Jornalistas são menos positivas do que as dos alistados na causa.
Apanha-se por aí um par de elogios ao IV Congresso dos Jornalistas, à sua organização e a alguns dos oradores (aqui e aqui, por exemplo).
Mas é um elogio de amigos, de compinchas. Uma troca de Vossas Excelências, num círculo fechado, elitista, que ainda não foi excluído da profissão, mas também não percebeu o que está em causa no exercício do jornalismo.
Esclarecedor, o relato que João Ramos de Almeida faz dos trabalhos do IV Congresso dos Jornalistas, a que em boa hora decidi não ir.
O texto confirma e reforça as reservas que, previamente, pus à constituição e composição da comissão organizadora, ao processo de elaboração do regulamento e à sua exequibilidade.
Por mim, continuo sem conhecer oficialmente as conclusões do Congresso, embora pertença à corporação e seja sócio do sindicato dos Jornalistas (com as quotas em atraso) e da Casa da Imprensa (com as quotas em dia).
Como João Ramos de Almeida relata no seu texto, imagino que as conclusões estarão na nuvem ou no mesmo lugar onde terão decorrido as discussões preparatórias do Congresso. O envio de um e-mail com o texto ou de uma ligação onde se pudessem consultar as decisões não seria excessivo. Para quem tanto tem falado de ineficácias e de fechamentos, a eficiência informativa dos meus representantes deixa um bocadinho a desejar.
Os donos dos jornais foram ao IV Congresso dos Jornalistas dizer que só a viabilidade económica das publicações garante a sua independência.
Para já, há sérias dúvidas quanto à viabilidade financeira dos jornais num mercado com a dimensão do português. Se o pressuposto é esse estamos condenados.
Depois, essa afirmação é virar o mundo de cabeça para baixo.E é uma desculpa esfarrapada para o beco em que tantos donos de negócios informativos, acolitados pelas suas escolhas directivas, enfiaram a informação que se produz.
A independência joga-se na vocação informativa dos donos dos jornais. Quando se fundam e compram jornais para serem instrumentos de objectivos que nada devem à informação, não há viabilidade económica que lhes mantenha a independência. Isso é o que acontece e nada tem a ver com o mercado, por muito que essa narrativa lhes dê jeito.
Podia dizer-se qualquer coisa sobre o chorrilho de falácias e lugares comuns acerca do jornalismo que Paulo Baldaia, um dos eternos directores da praça, verte em artigo de hoje no Diário de Notícias.
Mas seria gastar demasiada cera, depois do privilégio que o IV Congresso dos Jornalistas lhe deu de dizer coisinhas num painel segregado de directores, em vez de ir para a bicha e ter de se inscrever para falar como aconteceu com os outros jornalistas.
Ele que continue, em conjunto com os amiguinhos das direcções, a enterrar as vendas e a reputação do jornalismo e dos jornalistas. Ele que continue a dizer que boas sugestões são sempre aceites ou que existem demasiados direitos para os antigos (quais, quantos, adonde, como?) e poucos para os novos.
Parece que a mais importante conclusão que se vai podendo tirar do IV Congresso dos Jornalistas é que não se realizava há quase 20 anos. Essa expressão não faltou em nenhum dos mails que recebi da organização. Infelizmente, a frase é usada como uma acusação, em vez de servir uma explicação necessária.
Desisti de ir ao congresso e de nele intervir nos minutos imediatamente a seguir a abrirem as inscrições. Desisti de lá ir depois de o ver já tão pronto-a-vestir, com comissões e regulamentos fechados e sem ter visto a sua prévia discussão aberta à classe, de modo sério, continuado e abrangente.
Recebi o e-mail e inscrevi-me mal me foi possível, menos de dez minutos após a abertura de inscrições. Dos resultados da prévia e necessária discussão descentralizada não tive ecos, ninguém se deu ao trabalho de os fazer circular pela classe. Antes, houve umas tantas reuniões, mas a reunião de Lisboa, a que queria ir, foi anunciada com uma semana e picos de antecedência e em altura em que me encontrava fora – mas isso é problema meu.
Sem ecos públicos, e realmente disseminados, de discussões, de temas, de questões em causa, de nomes, deparei imediatamente com uma comissão organizadora completamente constituída e com um regulamento – tudo pronto e aprovado num processo cuja transparência em nenhum momento foi clara. Se fizeram tudo isso entre a reunião de jornalistas a que não pude ir (reuniões cujo funcionamento caótico conheço) e no escasso tempo que se seguiu até ao anúncio das duas coisas, parece-me que fizeram um trabalho altamente eficaz e bem dirigido.
Quanto à comissão, não faço ideia de onde terá caído, quais terão sido os critérios para convidar aqueles jornalistas e não outros, quem os terá discutido, quem lhes terá achado condições para a função. Está lá gente que estimo, mas a quem nunca ouvi uma ideia de jornalismo que os distinga da paisagem instalada; está lá gente com intervenções conhecidas a favor do jornalismo e dos jornalistas; está por lá, também, gente absolutamente responsável pelo estado a que o jornalismo chegou. E há faltas. Faltas que um bocadinho de sentido institucional, de respeito e de reconhecimento teria colmatado.
Do regulamento, que chegou aos índios tão pronto e finalizado como a comissão, gostaria de perceber o sentido da ideia de pré-submeter com mais de um mês de antecedência as comunicações ao Congresso e qual terá sido a intenção. Também não se percebem quais os critérios de publicação das comunicações e da sua votação.
Depois, algumas notas que gostava de ver respondidas pela organização e pelos meus camaradas envolvidos.
Andam por lá vários estudantes. A que título, com que pagamento? São voluntários? É uma espécie de pré-estágio para irem convivendo com estágios com trabalho, mas sem retribuição digna ou mesmo sem retribuição? Quem paga o Congresso? E o que pensam de reservar aos habilitados com cursos de comunicação social e afins o acesso a uma função decisiva para a democracia - como se ser jornalista dependesse de uma formação específica como as que se obtêm quando se estuda para médico, advogado ou engenheiro e não da capacidade de cumprir os dez pontos do seu código deontológico e de responder a seis perguntinhas simples e infantis: O Quê, Quem, Quando, Onde, Porquê, Como?
Querem que ser jornalista seja pertencer a um gueto, fora da sociedade, um grupo reprodutor dos tiques e escassas ideias da maioria dos professores e formadores da profissão? Limitar ainda mais o pluralismo de origem e de ideias, de uma profissão cujo acesso está absolutamente condicionado por critérios que entregam a decisão de quem entra e de quem fica aos donos do negócio e a quem o domina?
E que sentido faz misturar e sentar num mesmo painel, projectos digitais independentes, pertencentes a jornalistas, coisas interessantes e necessárias, mas de nicho, e que terão compreensíveis dificuldades de financiamento (saúde, Samuel; saúde Sofia), e projectos milionários, de orientação vulgar e habitual, apoiados por fortes e hegemónicos interesses económicos e comunicacionais, e cujas chefias e responsáveis têm há mais de uma década ampla presença nas televisões? Que comparação se pretende fazer? Que conclusões se espera tirar? Que paralelos de viabilidade se espera encontrar?
Por fim, a que título num congresso de tempo necessariamente limitado se convidam directores para um dos painéis? E a que título se convidam, para outro painel, os donos do negócio? E as agências de comunicação estarão noutro painel a fazer o quê?
Já não basta a todos conhecer o que os directores pensam da profissão, do jornalismo e dos seus critérios, através das decisões editoriais que diariamente evidenciam? Já não basta serem confundíveis com as administrações que têm feito do jornalismo e do seu produto o lugar que é? Já não basta ter de se ouvir, nas televisões, as opiniões desse clubístico círculo fechado?
Espantosa também a decisão de convidar as agências de comunicação para outro painel. O trabalho dos jornalistas é descondicionar os leitores. Levá-los a pensar e a criar convicções próprias. O trabalho das agências de comunicação é exactamente condicioná-los. Mas talvez o convite seja compreensível. Os jornalistas precisam de discutir assuntos como as suas próprias condições de trabalho, o tempo que têm para pensar e escrever as suas peças, discutir opções editoriais. Com as agências de comunicação tudo fica mais facilitado. Basta copiar e colar.
E que sentido faz convidar os donos dos jornais para fechar o Congresso e responder à quase leninística questão “E agora?” O presente dos jornais, a falta de leitores e de credibilidade não se deve a eles? Às suas más decisões e escolhas materiais e pessoais? Ao modo como há décadas aumentam a precariedade, desfazem redacções e dificultam as condições do trabalho?
A que título de abrangência e de pluralismo se convidaram agências de comunicação, directores e donos de jornais? Coragem e saber era deixá-los à porta do São Jorge, onde os trabalhos decorrem. Para as suas opiniões os palcos não faltam. Coragem e saber era dar esse espaço e esse tempo a quem quisesse discutir as questões dos jornalistas, as condições de trabalho dos jornalistas e de produção das notícias. Afinal, o encontro, que não se realizava há quase duas dezenas de anos, como a organização vincou em todas as comunicações que me fez chegar, chama-se Congresso dos Jornalistas e não Congresso do Jornalismo.
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